Projecto de Lei n.º 790/XIV/2.ª – Direito dos trabalhadores à desconexão profissional
Garante o direito dos trabalhadores à desconexão profissional.
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=110658
O uso crescente de novas tecnologias em contexto laboral alterou profundamente as relações de trabalho. Sendo certo que estes avanços tiveram impactos positivos, nomeadamente a criação de novos postos de trabalho ou as mudanças ao nível da organização do tempo de trabalho que permite, em muitos casos, trabalhar à distância de forma mais autónoma e flexível, estas tiveram também repercussões importantes na esfera privada dos trabalhadores.
Num mercado de trabalho cada vez mais competitivo, a utilização de novas tecnologias tem aumentado a pressão sobre os trabalhadores e criado a necessidade de estar sempre ligado ao trabalho. Por isso, muitos trabalhadores, para responder a exigências profissionais, acabam por trabalhar fora do horário de trabalho, prejudicando o seu período de descanso.
A título de exemplo, de acordo com dados divulgados pelo Eurofound resultantes do Inquérito Europeu sobre as Condições de Trabalho, de 2015, um trabalhador em cada cinco (22%) trabalha no seu tempo livre, várias vezes por mês, para atender às exigências do trabalho. [1]
Ainda, segundo o Inquérito ao Emprego sobre Organização do trabalho e do tempo de trabalho – 2.º Trimestre de 2019, divulgado pelo INE, quase 40% dos trabalhadores são contactados por motivos profissionais fora do horário de trabalho, sendo que desses 13,2% tiveram mesmo de trabalhar fora do horário normal.[2] Esta realidade tem vindo a aumentar, se compararmos estes resultados com os obtidos com o Inquérito ao Emprego sobre Organização do trabalho e do tempo de trabalho, referente ao ano de 2015.[3]
Estas dados são preocupantes porque demonstram que esta situação acontece com regularidade em Portugal e que, inclusivamente, tem vindo a aumentar. Sendo certo que esta se poderá agravar ainda mais atendendo às alterações que têm ocorrido ao nível da organização do tempo de trabalho.
Basta pensarmos que, por exemplo, no contexto actual, com o objectivo de conter a propagação da COVID-19, o teletrabalho, que até agora era quase excepcional, passou a ser utilizado com regularidade tendo sido determinada a sua obrigatoriedade sempre que as funções em causa o permitam e o trabalhador disponha de condições para as exercer.
Em consequência, de acordo com o Inquérito Rápido e Excepcional às Empresas – COVID-19 (1.ª quinzena de Julho de 2020) do Instituto Nacional de Estatística[4], 37% das empresas que responderam tinham pessoas em teletrabalho naquele período e 38% das empresas reportaram a existência de pessoal a trabalhar com presença alternada nas suas instalações devido à pandemia.
Ainda, de acordo com o Inquérito Rápido e Excepcional às Empresas-COVID-19: acompanhamento do impacto da pandemia nas empresas – Novembro de 2020, do Instituto Nacional de Estatística[5], no que diz respeito a alterações permanentes na forma de trabalhar motivadas pela pandemia, 31% das empresas consideraram muito provável o uso mais intensivo do teletrabalho.
Ora, esta possibilidade de trabalhar à distância pode ter como consequência o prolongamento do horário de trabalho e a dificuldade em separar a vida profissional da vida pessoal e familiar. De facto, neste período, verificou-se que o teletrabalho fez aumentar o número de horas trabalhadas. [6]
É certo que o facto de o trabalhador estar sempre ligado tem impactos profundos na sua vida pessoal e familiar e no seu bem-estar, afectando a sua qualidade de vida.
Em consequência, recentemente, em Janeiro de 2021, o Parlamento Europeu pediu à Comissão que apresentasse uma lei para garantir aos trabalhadores o direito a desligar-se digitalmente do trabalho fora do seu horário, sem quaisquer consequências, e que estabelecesse normas mínimas para o trabalho à distância, clarificando as condições de trabalho, o horário e os períodos de descanso. Esta iniciativa foi aprovada com 472 votos a favor, 126 contra e 83 abstenções.[7]
O Parlamento Europeu destaca, em comunicado, que as “interrupções ao tempo não laboral e o alargamento do horário de trabalho podem aumentar o risco de horas extraordinárias não remuneradas e podem ter um impacto negativo na saúde, no equilíbrio entre vida profissional e familiar e no descanso do trabalho”, pelo que os “patrões não devem exigir que os trabalhadores estejam disponíveis fora do seu horário de trabalho” devendo garantir-se que “os trabalhadores que invocam o seu direito a desligar sejam protegidos da vitimização e de outras repercussões negativas.”
Esta situação foi motivada, nomeadamente, pelo facto de, apesar da maioria dos países regulamentar o teletrabalho, apenas quatro (Bélgica, França, Itália e Espanha) reconhecem o direito a desligar.
A França foi a pioneira neste matéria. Através da Loi n.º 2016-1088, de 8 de Agosto, também conhecida como a “Lei El Kohmri”, a França introduziu no Código do Trabalho o direito à desconexão digital para garantia do direito ao repouso. Esta obriga as empresas, com cinquenta ou mais trabalhadores, a negociar com estes regras internas para as comunicações efectuadas fora do horário de trabalho, de forma a limitar o número de horas em que o trabalhador está conectado com a empresa. A lei prevê, também, acções de formação e de sensibilização para um uso correcto dos meios digitais de comunicação.
Ainda, a Espanha, em 2018, estabeleceu o direito do trabalhador à desconexão digital, com enfoque no seu direito ao descanso, remetendo para a negociação colectiva as modalidades de exercício desse direito.
Em Portugal, apesar das tentativas, a lei não prevê expressamente o direito a desligar. É verdade que a lei estabelece limites máximos do período normal de trabalho, sendo considerado trabalho suplementar o que ultrapasse aquele período, bem como períodos mínimos de descanso. Contudo, aquilo que se verifica na prática é que estes limites não estão a ser cumpridos, o que demonstra a necessidade de alterar a legislação para regular concretamente esta matéria.
Face ao exposto, constituindo o direito à desconexão profissional, cada vez mais, uma preocupação dos trabalhadores e atendendo a que, dadas as novas formas de organização de tempo de trabalho, é possível que a situação actual se agrave, propomos uma alteração ao código do Trabalho para regular esta matéria.
Em suma, clarificamos que o período de descanso do trabalhador se destina a permitir a sua recuperação física e psíquica, a satisfação das necessidades e interesses pessoais e familiares bem como ao desenvolvimento de actividades de cariz social, cultural ou lúdico.
Depois, prevemos expressamente o direito do trabalhador à desconexão profissional, não podendo o empregador, através da utilização de ferramentas digitais, estabelecer comunicações com o trabalhador fora do período normal de trabalho, podendo constituir, a sua violação, assédio, nos termos do artigo 29.º do Código do Trabalho.
Por fim, propomos que as formas de garantir o direito do trabalhador à desconexão profissional podem ser estabelecidas mediante Instrumento de Regulamentação Colectiva de Trabalho.
Assim, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, a Deputada não inscrita Cristina Rodrigues apresenta o seguinte projecto de lei:
Artigo 1.º
Objecto
A presente lei altera o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na sua redacção actual, garantindo o direito do trabalhador à desconexão profissional.
Artigo 2º
Alteração ao Código do Trabalho
É alterado o artigo 199.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, alterado pelas Leis n.ºs 105/2009, de 14 de Setembro, 53/2011, de 14 de Outubro, 23/2012, de 25 de Junho, 47/2012, de 29 de Agosto, 69/2013, de 30 de Agosto, 27/2014, de 8 de Maio, 55/2014, de 25 de Agosto, 28/2015, de 14 de Abril, 120/2015, de 1 de Setembro, 8/2016, de 1 de Abril, 28/2016, de 23 de Agosto, 73/2017, de 16 de Agosto, 14/2018, de 19 de Março, 90/2019, de 4 de Setembro e 93/2019, de 4 de Setembro, o qual passa a ter a seguinte redacção:
“Artigo 199.º
[…]
1 – […].
2 – O período de descanso destina-se a permitir ao trabalhador a sua recuperação física e psíquica, a satisfação das necessidades e interesses pessoais e familiares bem como ao desenvolvimento de actividades de cariz social, cultural ou lúdico.
3 – O trabalhador tem direito à desconexão profissional, não podendo o empregador, através da utilização de ferramentas digitais, estabelecer comunicações com o trabalhador fora do período normal de trabalho.
4 – As formas de garantir o direito do trabalhador à desconexão profissional podem ser estabelecidas mediante Instrumento de Regulamentação Colectiva de Trabalho.
5 – A violação do disposto no n.º 3 pode constituir assédio, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 29.º deste Código.”
Artigo 3.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Palácio de São Bento, 9 de Abril de 2021.
A Deputada, Cristina Rodrigues
[1] https://www.eurofound.europa.eu/pt/publications/report/2016/working-conditions/sixth-european-working-conditions-survey-overview-report
[3]https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=250463283&DESTAQUESmodo=2&xlang=pt
[4] https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/documentos-relacionados/iree_20200729.pdf
[5]https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=465948030&DESTAQUESmodo=2&xlang=pt
[6] https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-02-02/remote-working-s-longer-hours-are-new-normal-for-many-chart
[7] https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/society/20210121STO96103/parlamento-quer-garantir-o-direito-a-desligar-se-do-trabalho