Projecto de Lei n.º 535/XIV/1.ª – Consagra o direito de desconexão profissional
Consagra o direito de desconexão profissional, procedendo à décima sexta alteração ao Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=45311
Exposição de Motivos
Uma das formas de degradação das relações laborais que se vem verificando actualmente materializa-se na perturbação, por parte da entidade patronal, dos períodos de descanso do trabalhador, através do recurso a meios informáticos ou electrónicos, impossibilitando que este se “desligue” do trabalho. Deste modo, os trabalhadores veem a sua vida contaminada pelo trabalho, que lhes invade a casa, os fins-de-semana e as férias, via telemóvel ou email, estando, nos últimos anos, a criar-se uma cultura de estar “sempre ligado”.
O excesso de trabalho e a incapacidade de desconexão promovem um ambiente de permanente stress e exaustão, tornando as pessoas trabalhadoras a tempo inteiro. Ora, inegáveis são as consequências negativas que esta situação acarreta para a vida das pessoas. Recentemente, Pedro Afonso, psiquiatra, considerou que este paradigma da conexão permanente está a disseminar, passiva e harmoniosamente, um “novo tipo de esclavagismo” nas sociedades mais avançadas. Em entrevista, este afirmou que “As novas tecnologias levaram a que o trabalho começasse a invadir a esfera pessoal e fizeram com que, ao trabalho cumprido presencialmente, se some um outro trabalho que não é contabilizado nem remunerado. As pessoas sentem-se sequestradas pela pressão laboral”. Este especialista admite que é uma questão de tempo até que surjam problemas maiores: “os relacionados com a saúde física e psíquica e com o recurso aos psicofármacos, mas também com conflitos conjugais graves e divórcios”.
Um estudo realizado em 2016 sobre o impacto do excesso de carga laboral na saúde psíquica e familiar, no qual foram inquiridos 439 antigos alunos da AESE Bussiness School, em Lisboa, com uma média etária um pouco acima de 40 anos, concluiu que 53% trabalham, em média, 54 horas semanais, 57% admitiram trabalhar também em casa e 11% só conseguiram manter a sua actividade laboral porque estavam a fazer uso de psicofármacos, designadamente antidepressivos e ansiolíticos.
A nível europeu, dos 31 países que participaram num inquérito de opinião sobre segurança e saúde ocupacional, da Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho, em Maio de 2013, Portugal era o terceiro país com maior percentagem de trabalhadores a referir que o stress relacionado com a actividade profissional é muito comum (28%).
Com efeito, de acordo com a literatura, o stress e a exaustão laborais podem provocar sintomas depressivos, ansiedade e perturbações de sono, além de um rol de doenças físicas, como a hipertensão, doenças cardiovasculares e diabetes. Segundo uma pesquisa realizada no Reino Unido pelo regulador Britânico Health and Safety Executive, 43% das faltas dos trabalhadores por doença estavam relacionadas com stress. Nos Estados Unidos, a American Psychological Association considera que os factores de stress mais comuns são o trabalho e o dinheiro, sendo que o stress frequentemente resulta em irritabilidade, raiva, ansiedade e nervosismo.
Para além disto, cada vez mais estudos confirmam que trabalhar ininterruptamente não é sinónimo de excelência e produtividade, podendo levar ao burnout (estado caracterizado por níveis extremos de exaustão, despersonalização e quebra do sentimento de realização profissional), bem como a processos de tomada de decisão pobres. Ainda segundo dados da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional, 13,7% das pessoas activas em Portugal estavam em estado de burnout em 2016. Um estudo nacional sobre o “Burnout na classe médica”, divulgado no final de 2016, revelou que dois terços dos médicos portugueses estão em elevado nível de exaustão emocional, uma das dimensões da síndrome de burnout. Um outro estudo da Universidade do Minho constatou igualmente que um quinto dos enfermeiros tem sintomas de exaustão física e emocional.
Adicionalmente, a investigação de Erin Reid, especialista em comportamento organizacional e docente da McMaster University (Ontário), demonstra que estar sempre disponível é disfuncional para toda a gente em determinado ponto. Nas suas palavras “As chefias assoberbam os subordinados, contactam-nos fora do horário de trabalho e fazem pedidos de trabalho adicional no minuto antes de saírem. Para satisfazerem as exigências, os trabalhadores chegam mais cedo, saem mais tarde, fazem directas, trabalham aos fins-de-semana e permanecem ligados aos dispositivos electrónicos 24 horas por dia, sete dias por semana. E aqueles que não o conseguem, ou não querem, saem penalizados”. Defende ainda que as organizações pressionam os profissionais para serem “trabalhadores ideais”, totalmente dedicados ao seu emprego e sempre disponíveis. Qualquer sugestão de interesses ou compromissos exteriores ao trabalho pode sinalizar falhas de atitude para com o trabalho e pode, de facto, significar menos oportunidades de progressão na carreira. Por isso, um grande número de profissionais continua a acreditar que, para atingir o sucesso, tem de se conformar a esse ideal, priorizando uma e outra vez a esfera laboral.
Esta situação é de tal modo preocupante que, em 2017, França aprovou legislação sobre esta matéria que reconhece aos trabalhadores o “direito a desligar”, ou seja, ficar offline, sem atender telefonemas ou responder a emails profissionais fora do horário de trabalho, sendo estas disposições apenas aplicáveis às empresas com mais de 50 trabalhadores.
Esta ideia não é, porém, nova. Em 2014, a Alemanha já tinha feito aprovar uma legislação que impede as chefias de contactarem as suas equipas por telefone ou por correio electrónico fora do horário de trabalho, a não ser em caso de emergência. Na Wolkswagen, desde 2011, que foi adoptado um sistema informático que bloqueia o envio de emails para os telemóveis dos trabalhadores entre as 18h15 e as 7h dos dias úteis e durante os fins-de-semana.
Em Portugal, a Constituição da República Portuguesa estabelece expressamente no artigo 59.º, n.º 1, alíneas b) e d), que todos os trabalhadores, sem distinção de idade, género, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar e ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas.
O Código do Trabalho faz algumas referências ao período de descanso do trabalhador, considerando-o, nos termos do artigo 199.º, como aquele que não seja tempo de trabalho. O Código do Trabalho estabelece ainda o direito ao intervalo de descanso, no artigo 213.º, nos termos do qual o período de trabalho diário deve ser interrompido por um intervalo de descanso, de duração não inferior a uma hora nem superior a duas, de modo a que o trabalhador não preste mais de cinco horas de trabalho consecutivo, ou seis horas de trabalho consecutivo caso aquele período seja superior a 10 horas. Estabelece ainda um período de descanso diário, o qual, nos termos do artigo 214.º, deve ser de, pelo menos, onze horas seguidas entre dois períodos diários de trabalho consecutivos.
Todavia, ainda que tal resulte da interpretação da Constituição e do espírito e das normas acima referidas do Código do Trabalho, não existe nenhuma disposição que, expressamente, impeça o empregador de contactar o trabalhador fora do horário do trabalho. Assim, ainda que exista na letra da lei a consagração do direito ao descanso diário dos trabalhadores, a experiência e a prática têm demonstrado que a evolução tecnológica aliada à pressão existente no mundo laboral contribuem para que o trabalhador esteja constantemente ligado ao trabalho, não sendo fácil traçar uma linha entre o tempo que se dedica ao trabalho e aquele que se pode despender com o lazer, a família e outros compromissos pessoais. Esta realidade é bem clara quando um estudo do Instituto Nacional de Estatística, de Novembro de 2019, demonstrou que quase 40% da população portuguesa afirma que já foi contactada pelos empregadores sobre questões laborais durante o seu horário de descanso.
Deste modo, tendo em conta as consequências gravosas, já largamente demonstradas, que o excesso de trabalho e a incapacidade de desconexão têm na vida das pessoas, somos de entendimento que o Código do Trabalho deve prever expressamente o direito do trabalhador à desconexão profissional, facto que se tornou necessário em virtude da crescente utilização de ferramentas digitais no âmbito da relação laboral. Esta intervenção cirúrgica do legislador é importante na medida em que, ao clarificar a legislação laboral, estar-se-á a reforçar a posição do trabalhador contra intromissões da entidade empregadora no seu tempo de descanso.
Neste sentido, com o presente projecto de lei o PAN, cumprindo o seu programa eleitoral e relançando um importante debate travado na anterior legislatura, propõe que se defina claramente o que se entende por períodos de descanso do trabalhador, estabelecendo expressamente que este tem o direito a fruir dos períodos de descanso, de férias e feriados de que dispõe sem que seja perturbado nesse gozo, designadamente a tomar conhecimento e/ou responder a estímulos de natureza profissional que sejam promovidos ou proporcionados pela entidade empregadora, um seu colega de trabalho ou qualquer terceiro ligado à entidade empregadora.
Para além disso, propomos também a consagração do direito do trabalhador à desconexão profissional, nos termos do qual este não pode ser incomodado pelo empregador, fora do horário de trabalho, excepto em situações de força maior, as quais podem ser definidas e enquadradas através de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho. Estabelece-se, ainda, que é expressamente vedado à entidade empregadora obstar, dificultar ou sancionar, de modo directo ou indirecto, o exercício pelo trabalhador do direito de desconexão profissional e que caso tal ocorra será punida como contra-ordenação grave.
A situação actual está a tornar-se num estilo de vida completamente contrário à saúde e bem-estar das pessoas. Os períodos de descanso são de enorme importância destinando-se a permitir ao trabalhador a sua recuperação física e psíquica, a satisfação das necessidades e interesses pessoais e familiares, bem como ao desenvolvimento de actividades de cariz social, cultural ou lúdico. Assim, e porque a experiência demonstra que tais não estão a ser respeitados, entendemos que cabe ao legislador intervir no sentido de garantir a efectividade dos tempos de descanso do trabalhador, salvaguardando a sua saúde e bem-estar.
Pelo exposto, e ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, as Deputadas e o Deputado do PAN abaixo assinados apresentam o seguinte Projecto de Lei:
Artigo 1.º
Objecto
A presente lei consagra o direito de desconexão profissional, procedendo para o efeito à décima sexta alteração ao Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, e alterado pelas Leis n.os 105/2009, de 14 de Setembro, 53/2011, de 14 de Outubro, 23/2012, de 25 de Junho, 47/2012, de 29 de Agosto, 69/2013, de 30 de Agosto, 27/2014, de 8 de Maio, 55/2014, de 25 de Agosto, 28/2015, de 14 de Abril, 120/2015, de 1 de Setembro, 8/2016, de 1 de Abril, 28/2016, de 23 de Agosto, 73/2017, de 16 de Agosto, 14/2018, de 19 de Março, 90/2019, de 4 de Setembro, e 93/2019, de 4 de Setembro.
Artigo 2.º
Alteração ao Código do Trabalho
O artigo 199.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, passa a ter a seguinte redacção:
«Artigo 199.º
[…]
1 – […].
2 – O período de descanso destina-se a permitir ao trabalhador a sua recuperação física e psíquica, a satisfação das necessidades e interesses pessoais e familiares bem como ao desenvolvimento de actividades de cariz social, cultural ou lúdico.
3 – É garantido ao trabalhador o direito a fruir dos períodos de descanso de que dispõe sem que seja perturbado nesse gozo, designadamente e sem dependência do meio que lhe subjaz, a tomar conhecimento ou responder a estímulos de natureza profissional que sejam promovidos ou proporcionados pela entidade empregadora.
4 – Constituiu contra-ordenação grave a violação do disposto no n.º 3.»
Artigo 3.º
Aditamento ao Código do Trabalho
É aditado ao Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, o artigo 214.º-A, com a seguinte redacção:
«Artigo 214.º-A
Direito de desconexão profissional
1 – Durante os períodos de descanso, o trabalhador tem o direito à desconexão profissional, independentemente de qualquer comunicação prévia e sem prejuízo da existência de razões de força maior, que podem ser definidas ou enquadradas mediante instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
2 – Entende-se por direito de desconexão profissional o direito do trabalhador a, durante os períodos de descanso, dias de férias e feriados, não exercer qualquer actividade de carácter profissional e de se opor, não atender, não responder ou fazer cessar, o fluxo comunicacional, designadamente através de tecnologias de informação e de comunicação, directa ou indirectamente, relacionado com a sua actividade profissional, que consigo seja estabelecido pela entidade empregadora, pelos seus superiores hierárquicos, pelos seus companheiros de trabalho ou por terceiros que se relacionem com a empresa.
3 – O exercício do direito de desconexão profissional não obsta ao cumprimento pelo
trabalhador dos deveres que, pela sua natureza, não dependem da efectiva prestação de trabalho.
4 – É proibida qualquer prática da entidade empregadora que, directa ou indirectamente, obste, dificulte ou sancione o exercício pelo trabalhador do direito de desconexão profissional ou discrimine o trabalhador por causa desse exercício.
5 – Em caso de ocorrência de razão de força maior que, nos termos do número 1, justifique a derrogação do disposto no presente artigo, o trabalhador tem direito a descanso compensatório remunerado e a uma compensação remuneratória, nos termos dos artigos 229.º e 268.º do presente Código.
6 – Constituiu contra-ordenação grave a violação, pelo empregador, do direito à desconexão profissional.»
Artigo 4.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Assembleia da República, Palácio de São Bento, 25 de Setembro de 2020
As Deputadas e o Deputado,
Bebiana Cunha
Inês de Sousa Real
Nelson Silva